“Abrindo as pernas"
A
linguagem traduz os valores culturais, é uma construção histórico-social e,
portanto, não existe discurso neutro. O que dizemos e a forma como dizemos
revela não apenas a história social que nos compõe, mas também os valores que
abraçamos estejamos conscientes deles ou não. E mesmo esta “pseudo
inconsciência” está impregnada de conceitos, preconceitos e construções
imagéticas daquilo que acreditamos como realidade e que escapará em nosso
discurso. O discurso nos desnuda e nos revela tanto para quem nos ouve quanto
para nós mesmos. Mas será que estamos ouvindo ou nos ouvindo?
Ouvindo
uma colega desabafar de determinada situação injusta no trabalho, ela exclamou:
“ficou fácil demais, estamos abrindo as pernas!
” O outro colega arremata “agora é só
abrir as pernas, dar mole…” E eles nem se deram conta da violência presente
na fala, violência de gênero: o feminino, quem abre as pernas são as mulheres
em atos sexuais, abrir as pernas seria corroborar, concordar com as injustiças,
as sacanagens, se submeter... Sequer consideraram as pernas abertas a força! Ela quem
deu mole! Quantas vezes ouvimos isso quando fomos ludibriadas, enganadas,
traídas.
Abrimos as pernas! Baixamos a guarda! É
assim que vítimas se transformam em algozes de si mesmas, e mulheres vítimas de
violência são questionadas pela roupa, pelo horário, pelo lugar em que estavam
como se o respeito a integridade delas dependesse disso. Infelizmente sim! E no
discurso cotidiano encontramos a concordância e manutenção desses dolorosos
estigmas confirmando mais uma vez a força da submissão feminina – “abriu
as pernas” – permitiu, anuiu. As violências simbólicas presentes nos
discursos confirmam que é uma fraqueza a própria ação feminina de se dar ao
outro, ou reconfirmam que ser mulher é ser fraca, é abrir as pernas!
Precisamos
enfraquecer o cimento grosso do preconceito deixando de deitar sobre ele
camadas e mais camadas de falas preconceituosas, desnaturalizando o discurso,
revendo as falas e os conceitos que os sustentam. Isso exige presença, atenção,
reflexão. Só conseguiremos apagar os estigmas nos tornando conscientes deles e
das suas implicações e consequências. Abrir as pernas em situação de opressão é
violência, e em respeito a todas as mulheres que foram violentadas carecemos
urgentemente de mudar o discurso, já que o discurso é gerador de posturas
correspondentes. Está na hora de abrir cabeças! Arejar pensamentos, coser novas
narrativas em que o respeito seja a tônica principal!
Núúúúú! E o ato de "fechar as pernas" que me foi ensinado pelo meu pai, desde pequena, no sentido de não permitir que o outro me invada é raro na nossa educação. Temos muito o que crescer... pq pernas foram feitas para se abrir e pra fechar, segundo o movimento e o desejo do corpo, que as comanda, não do outro que a domina ou deseja.
ResponderExcluirPerfeito!
ExcluirQue texto bacana, Tati! Muitas vezes, ao criticar uma postura retrógrada, reforçamos o preconceito incutido na linguagem.
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