Um olhar perineal
Um olhar perineal
Estive em uma consulta ginecológica de
rotina. E enquanto espero e percebo as várias outras mulheres em espera, penso
nas entranhas dos nossos corpos e o quanto para tantas, ainda é um corpo
estranho com o qual, muitas vezes não dialogamos. Temos as sensações de prazer,
dor, mas o quanto isso transpassa nossa consciência?
Tenho 43 anos recém-completados e
estamos em 2021, ainda atravessando uma pandemia que me parece eterna. Ano
passado devido a essa situação pandêmica, não fui a nenhuma consulta, então preciso
ir. (Preciso?) O ginecologista, um senhor de talvez sessenta anos, desgrenhado
com sua cabeleira grisalha. Mais preocupado em digitar com dois dedos do que em
me ouvir, e olha que nem é uma consulta do Sistema Único de Saúde brasileiro,
mas conveniada, e que dependendo da visão capitalista do distinto médico, dá no
mesmo. O que infelizmente significa em casos mais leves, ser tratado sem grande
consideração ou em casos mais graves, ser tratado sem qualquer respeito. E
enquanto eu falava sobre hormônios e entre tomar ou não... Ele mal me escutava,
até que devo ter dito algo absurdo, então ele começou a rir e começou a me
explicar como se eu fosse uma ignorante a respeito do meu próprio corpo. (Seria
um mansplaining? Quando um homem usa
seu tempo para explicar algo que é óbvio para a mulher, como se ela não tivesse
a capacidade de entender e que, portanto, precisa “ensiná-la”- fiquei me
perguntando.) Pensei em ir embora, como continuar uma consulta na qual terei
que me despir, abrir as pernas, para alguém que se quer se permite me ouvir?!
As violências simbólicas do cotidiano, pequeninas lacerações!
Como eu reclamei problematizando a
situação, ele me deu mais atenção, mudou o tom. Decidi não ir, mas permaneci
com o instinto desconfiado. Primeira pergunta frente a observação do corpo:
algum escape de urina? - Não! Respondo. Lágrimas muitas, urina não! (Claro que
não falo isso, as minhas lágrimas guardo para mim mesma.) Ele diz ser normal na minha
idade, diz que tenho uma laceração vaginal devido ao parto (que foi há doze
anos), mas como ele não me disse isso nos outros anos? O que mudou? Meu corpo
ou o seu olhar para ele? Afinal agora eu tenho 43 anos! Isso deve pesar. Ele
examina minhas mamas e pergunta se eu as examino. - Sim, senhor, eu vivo me
tocando! (Gostaria, mas não dá para responder assim para pessoas de horizontes estreitos! Certamente viria outro mansplaining.)
Ele me fala da possibilidade de
cirurgia, levantar útero e coisas do gênero. Pergunto sobre exercícios para o
assoalho pélvico, e ele diz serem inúteis. O médico – esse “detentor do saber”
– sempre a desconsiderar outros saberes, os que não são devidamente comprovados
cientificamente. E eu preciso realmente aceitar esse olhar que a ciência construiu
sobre meu corpo feminino? Ciência que sempre ignorou meu prazer nos parcos
trabalhos acadêmicos sobre o clitóris ou orgasmo feminino? Que jogou sobre o
meu corpo a carga de anticoncepcionais ou de uma laqueadura e pouco avançou
para a elaboração de um anticoncepcional masculino ou de propagação em massa
dos benefícios da vasectomia. O corpo feminino sempre digno de intervenções
cirúrgicas, coquetéis hormonais e uma não escuta efetiva!
Esfaqueio o médico com meu sorriso de Mona Lisa – ele não sabe, mas sentada a sua frente, há uma mulher desperta. Eu ouço o que meu corpo me diz, e posso te ouvir se me ouvir. Mas o contrário não é possível. Venho trabalhando descolonizações patriarcais em meu ser. Aqui não é mais terreno de testes para um cientificismo antifeminino. Vou embora com minha laceração perineal, convivemos juntas desde o último parto, há doze anos e se isso não foi um problema antes, porque será agora? Falemos do tônus vaginal, falemos do prazer ou da ausência dele para daí observarmos as reais necessidades cirúrgicas, que tal?
(Não quero desconsiderar os saberes médicos, mas viva a ginecologia natural que é o conhecimento e domínio do meu próprio corpo e os cuidados em consonância com meu ciclo!)
Tatiane Moreira
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