Mil lágrimas

Itamar Assumpção e Alice Ruiz escreveram uma doce canção de sobrevivência feminina e a retomo aqui como quem despeja unguento em feridas:

Em caso de dor ponha gelo
Mude o corte de cabelo (mude como modelo)
Vá ao cinema dê um sorriso
Ainda que amarelo (esqueça seu cotovelo)

O mais importante aí é o movimento, a dor, o sofrimento tende a nos paralisar. Mover-se e dedicar-se a alguma ação, ainda que simples como um corte de cabelo (quanta potência há num corte de cabelo quando uma mulher decide por si mesma enfrentar alguma situação!), uma ida ao cinema, o exercício de voltar a sorrir pode nos ajudar imensamente, ainda que sustentar esse sorriso não seja fácil, o façamos por nós mesmas e pelos que convivem conosco, para tanto é preciso esquecer o próprio cotovelo.

Se amargo for já ter sido
Troque já esse vestido (troque o padrão do tecido)
Saia do sério deixe os critérios
Siga todos os sentidos (faça fazer sentido)
A cada mil lágrimas sai um milagre

Quebrar padrões, mudar a narrativa que nos vitimiza. Troque já esse vestido – e sempre vejo um dedo apontando para a necessidade dessa ação. Quais personas estamos sustentando e que nos martirizam? Por quanto tempo ainda vamos nos vestir com a tristeza que nos deixaram? Por mais que nos doa qualquer situação, para sair dela é preciso nos despir de expectativas, projeções, ilusões. É preciso buscar os sentidos, reavivá-los! Prepare um banho, tome um chá, dance com sua dor e sua solidão, costure o sentido de tudo o que tem vivido! Essa roupa valerá a pena usar, pelo menos até que sejamos capazes de parir o milagre da autoaceitação.

Caso de tristeza vire a mesa
Coma só a sobremesa (coma somente a cereja)
Jogue para cima, faça cena
Cante as rimas de um poema
Sofra penas (viva apenas)

Teremos a cada dia nossa própria presença, não se traia mais uma vez. Sustente a si mesma, com sua sanidade e loucura, equilibrando doçura e acidez, ferocidade e mansuetude. Somos seres complexos e qualquer coisa, situação ou pessoa que nos queira reduzir, use a arte da espreita. Vire a mesa, coma, cante, sofra, viva apenas!

Sendo só fissura ou loucura
Quem sabe casando cura (ninguém sabe o que procura)
Faça uma novena, reze um terço
Caia fora do contexto (invente seu endereço)
A cada mil lágrimas sai um milagre

Caia fora! Corra para longe dos que querem roubar sua alma, seu sorriso, aprisionar sua alma selvagem. Corra para longe dos que te ignoram, e se recusam a enxergar sua beleza, a ouvir sua dor. Reze para Deus, para a Deusa. Invente um novo caminho. E siga por ele, confiante em si mesma.

Mas se apesar de banal,
Chorar for inevitável
Sinta o gosto do sal, do sal, do sal
Sinta o gosto do sal
Gota a gota, uma a uma
Duas, três, dez, cem mil lágrimas
Sinta o milagre
A cada mil lágrimas sai um milagre

Há perigo na dor, caso nos estacionemos nela. Há potência na dor, caso consigamos transformá-la em aprendizado. O que você tem aprendido com seus desencontros? Se ficou um buraco em seu peito é possível plantar algo de bom, de belo? Mesmo que seja regado por muitas lágrimas? As lágrimas costuram os rasgos na alma, já disse uma velha sábia. Se permita essa transmutação! Se permita o milagre de renascer!

Trabalho da fotógrafa húngara Noell S. Oszvald

Comentários

  1. Como eu amo essa música! Obrigada, Tati, por compartilhar suas interpretações. Você tem o dom da palavra e ler o que você escreve é enriquecedor.

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