A velha
A velha, que aos poucos vou me tornando me espreita
através do espelho.
Seus olhos muito sérios pedem atenção
para as tramas que teço, as escolhas que faço
e me fazem sentir cada passo,
cada pedaço de caminho trilhado até então.
Da infância, não se esqueça da criança.
Mantenha seu cultivo clandestino de esperança.
Guarde como um tesouro as memórias de alegria.
Se mantenha curiosa e em estado de aprendiz.
Tenha gratidão pelos pais que a receberam,
as mãos que te devotaram cuidado e nutrição.
Sabemos que há marcas:
a inocência perdida em carinhos inapropriados
e todo sabor de culpa na descoberta territorial do corpo;
as lágrimas salgadas pelos mortos queridos
- pai, avós, tios -
eles nunca mais voltaram,
mas também, de certa forma, nunca partiram.
E me visitaram em sonhos e me comporam de lembranças e ausências.
Da adolescência, carregue as descobertas:
o bico do seio nu apontando para o sol,
as perambulações calçada com as botas de fuga,
os amores fugazes que eram sentidos como eternos,
o inebriante sentido do eu.
Continue a extrair de todo amargor vivido
das experiências duras,
o elixir da força
para continuar se refazendo a cada dia,
para dar conta da travessia de tempestades outras
e fazer lume quando se ver confrontada pela escuridão.
Por favor, mantenha produtivo seu cultivo clandestino de esperança.
A velha,
que aos poucos vou me tornando me espreita
através do espelho.
Ela parece dizer: escolha bem, esteja consciente.
Estamos sempre a tecer saúde ou doença,
liberdade ou prisão.
Verdade, nem tudo está em nossas mãos.
Mas o que estiver: escolha bem, esteja consciente.
A desgraça maior é nos abandonarmos pelo caminho,
deixar mudo nosso canto e inacabada a nossa história.
A velha.
(Tatiane Moreira)
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